top of page

A Bíblia e a Esquerda: Por Que os Valores Sociais da Esquerda Se Aproximam do Evangelho

Mãos partilhando pão simbolizando a comunhão e solidariedade ensinadas no evangelho
Mãos partilhando pão simbolizando a comunhão e solidariedade ensinadas no evangelho

Introdução


Quando se fala em política e fé, muitos cristãos se veem diante de um dilema aparentemente insolúvel: deveria o seguidor de Cristo se alinhar à direita ou à esquerda? Essa pergunta tem dividido comunidades, famílias e igrejas, criando muros onde deveria haver pontes de diálogo. No entanto, a resposta para essa questão exige algo mais profundo do que simplesmente escolher um lado no espectro político tradicional. Ela exige que olhemos para o coração do evangelho, para a essência dos ensinamentos de Jesus Cristo, que muitas vezes desafia nossos rótulos humanos e revela uma prioridade clara e inegociável: cuidar do próximo.


Vivemos em uma época de extrema polarização política. As redes sociais amplificaram vozes e criaram bolhas ideológicas onde as pessoas se sentem confortáveis apenas entre aqueles que pensam exatamente como elas. Nesse contexto, muitos cristãos têm sido levados a acreditar que existe uma única posição política compatível com a fé cristã. Alguns defendem que ser cristão significa necessariamente ser conservador, defender a moral tradicional e apoiar políticas de direita. Outros argumentam que o verdadeiro cristianismo é progressista, inclusivo e alinhado com causas sociais típicas da esquerda. Mas será que o evangelho cabe tão facilmente em nossas caixinhas políticas?


A verdade é que Jesus Cristo não veio estabelecer um programa político partidário. Ele não fundou um movimento de direita nem de esquerda. Ele anunciou o Reino de Deus, uma realidade que transcende e, ao mesmo tempo, confronta todas as estruturas humanas de poder. No entanto, isso não significa que a fé cristã seja neutra ou indiferente às questões sociais e políticas. Pelo contrário, o evangelho tem implicações profundas para a forma como vivemos em sociedade, como tratamos os vulneráveis, como distribuímos recursos e como construímos comunidade.


Este artigo propõe uma reflexão honesta e bíblica sobre essa questão. Não se trata de defender cegamente a esquerda ou a direita, mas de examinar, à luz das Escrituras, quais valores políticos e sociais mais se aproximam dos ensinamentos de Jesus. E quando fazemos esse exercício com sinceridade, descobrimos algo surpreendente: em muitos aspectos relacionados à justiça social, ao cuidado com os pobres e à vida comunitária, os valores tradicionalmente associados à esquerda ressoam de forma notável com o coração do evangelho.


Isso não significa que a esquerda política seja perfeita ou que represente fielmente todos os princípios cristãos. Longe disso. Há pontos de tensão e até mesmo de contradição entre certas vertentes da esquerda e a cosmovisão bíblica, especialmente quando se trata da centralidade de Deus e da dignidade da vida humana. No entanto, quando observamos temas como solidariedade, partilha de recursos, cuidado com os marginalizados e busca por justiça social, encontramos uma proximidade inegável entre o projeto do Reino de Deus apresentado nas Escrituras e os ideais defendidos por movimentos progressistas.


Por outro lado, a direita política também apresenta valores que, em certos aspectos, dialogam com a fé cristã, especialmente no que diz respeito à defesa da família, da ordem social e de princípios morais. Porém, quando essa mesma direita se torna excludente, nacionalista, individualista ou indiferente ao sofrimento dos mais pobres, ela se afasta radicalmente do mandamento central de Jesus: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.


O objetivo deste texto não é convencer ninguém a votar em um partido específico ou a adotar uma bandeira política. O que buscamos aqui é resgatar a radicalidade do evangelho, que muitas vezes tem sido domesticado por interesses ideológicos de ambos os lados. Queremos lembrar que, antes de sermos de direita ou de esquerda, somos chamados a ser do Reino de Deus. E esse Reino tem valores claros: justiça, misericórdia, humildade, amor sacrificial e cuidado especial pelos pequeninos, pelos pobres, pelos estrangeiros e pelos esquecidos.


Ao longo deste artigo, vamos explorar como a Bíblia descreve a vida em comunidade, quais valores da esquerda ressoam com os ensinamentos de Jesus, onde a esquerda se afasta do evangelho e como a direita se posiciona diante desses mesmos princípios. Vamos fazer isso não com o espírito de divisão, mas com o desejo de enxergar com clareza o que realmente importa: viver os valores do Reino de Deus em um mundo que desesperadamente precisa de esperança, justiça e amor verdadeiro.


Que este texto seja um convite ao diálogo, à reflexão e, acima de tudo, a um retorno à fonte: Jesus Cristo e sua Palavra. Porque, no final das contas, o que distingue o verdadeiro cristão não é sua filiação partidária, mas sua disposição de viver a solidariedade por amor a Deus e ao próximo, confrontando o egoísmo e a injustiça onde quer que se encontrem.


Mãos diversas unidas em círculo ao redor de Bíblia aberta, simbolizando comunidade cristã, solidariedade e valores do evangelho
Mãos diversas unidas em círculo ao redor de Bíblia aberta, simbolizando comunidade cristã, solidariedade e valores do evangelho

O Evangelho e a Vida em Comunidade


A vida cristã autêntica, conforme apresentada nas Escrituras, nunca foi concebida para ser vivida de forma isolada ou individualista. Desde o Antigo Testamento até os ensinamentos de Jesus e a prática da igreja primitiva, a Bíblia revela consistentemente que a fé em Deus se manifesta através da vida em comunidade, da partilha de recursos e do cuidado mútuo entre os crentes. Este é um dos pilares fundamentais que muitos cristãos modernos têm esquecido, especialmente em sociedades marcadas pelo individualismo exacerbado e pela cultura do "cada um por si".


Quando examinamos os primeiros capítulos do livro de Atos, encontramos um retrato revolucionário de como os primeiros cristãos viviam sua fé. Em Atos 2:44-45, lemos: "Todos os que criam estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam suas propriedades e bens, e repartiam o produto entre todos, conforme a necessidade de cada um". Esta não era uma prática ocasional ou excepcional, mas o padrão de vida da comunidade cristã primitiva. Eles entenderam que professar fé em Cristo e viver de forma egoísta eram realidades incompatíveis.


O texto de Atos 4:32-35 reforça ainda mais essa visão: "Da multidão dos que creram, era um só o coração e uma só a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum... Pois não havia entre eles necessitado algum". A ênfase aqui é clara: a marca distintiva da igreja primitiva não era apenas a ortodoxia doutrinária ou a frequência aos cultos, mas o compromisso radical com a eliminação da pobreza dentro da comunidade de fé. Ninguém passava necessidade porque aqueles que tinham mais compartilhavam voluntariamente com aqueles que tinham menos.


Este modelo de vida comunitária e solidária não surgiu do nada. Ele estava profundamente enraizado nos ensinamentos do próprio Jesus Cristo. Quando Jesus foi questionado sobre qual era o maior mandamento da lei, ele respondeu sintetizando toda a ética bíblica em dois princípios fundamentais: amar a Deus de todo o coração e amar o próximo como a si mesmo (Mateus 22:37-39). E Jesus deixou muito claro quem é esse "próximo" que devemos amar: não apenas aqueles que são como nós, mas especialmente os marginalizados, os pobres, os estrangeiros e os vulneráveis.


Em Mateus 25:35-40, Jesus apresenta um dos textos mais desafiadores de todo o evangelho. Ele diz que no dia do juízo, separará as pessoas com base em como elas trataram os necessitados: "Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me". E quando os justos perguntam quando fizeram isso por ele, Jesus responde: "Em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes".


Esta passagem é absolutamente radical. Jesus está dizendo que o amor a Deus se manifesta concretamente no cuidado com os necessitados. Não há como separar espiritualidade de responsabilidade social. Não podemos dizer que amamos a Deus se ignoramos a fome, a sede, a nudez e o sofrimento daqueles ao nosso redor. A fé cristã autêntica exige ação prática em favor dos pobres e marginalizados.


Essa preocupação com os vulneráveis também está profundamente enraizada no Antigo Testamento. Em Deuteronômio 10:18-19, lemos que Deus "faz justiça ao órfão e à viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e veste. Amai, pois, o estrangeiro, porque fostes estrangeiros na terra do Egito". Deus não apenas se preocupa com os marginalizados, mas ordena seu povo a fazer o mesmo. A justiça social não é um tema periférico na Bíblia, mas central ao caráter de Deus e, portanto, deve ser central à vida de seus seguidores.


O profeta Isaías confronta duramente aqueles que praticam religiosidade vazia enquanto ignoram a justiça e o cuidado com os pobres. Em Isaías 58:6-7, Deus rejeita o jejum religioso que não resulta em transformação social: "Porventura, não é este o jejum que escolhi: que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da servidão, deixes livres os oprimidos e despedaces todo jugo? Porventura, não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desabrigados, e, se vires o nu, o cubras?"


Esses textos revelam algo fundamental: a verdadeira espiritualidade bíblica nunca pode ser divorciada da prática da justiça social e do cuidado comunitário. A fé que não se traduz em ações concretas de amor e solidariedade é morta, como afirma Tiago 2:14-17. Uma fé que ignora o sofrimento dos pobres, que se omite diante da injustiça e que se preocupa apenas com a salvação individual é uma distorção grave do evangelho de Jesus Cristo.


Quando olhamos para esses princípios bíblicos de vida em comunidade, partilha de recursos e cuidado com os vulneráveis, percebemos que eles se aproximam notavelmente de valores que, no espectro político moderno, são geralmente associados à esquerda. A ênfase na solidariedade coletiva, na redistribuição de recursos para eliminar a desigualdade, no cuidado especial com os marginalizados e na construção de uma sociedade onde ninguém passa necessidade são princípios que ecoam tanto nas páginas das Escrituras quanto nos ideais progressistas de justiça social.


Isso não significa que qualquer movimento político de esquerda seja perfeito ou plenamente bíblico. Mas significa que, quando a esquerda defende políticas que visam proteger os vulneráveis, reduzir a desigualdade e promover a solidariedade, ela está, consciente ou inconscientemente, ressoando com valores profundamente enraizados no evangelho de Jesus Cristo. A igreja primitiva praticou um modelo de vida que muitos hoje chamariam de "comunista" – embora motivado não por ideologia política, mas por amor a Deus e ao próximo.


O desafio para os cristãos hoje é recuperar essa visão comunitária e solidária da fé. Em vez de abraçar o individualismo que caracteriza tanto o capitalismo quanto a cultura ocidental moderna, somos chamados a viver como a igreja primitiva: compartilhando recursos, cuidando uns dos outros e garantindo que ninguém em nossa comunidade passe necessidade. Esse é o evangelho em ação, e é precisamente essa prática radical que tem o poder de transformar não apenas indivíduos, mas sociedades inteiras.


Igreja primitiva compartilhando recursos e vivendo em comunidade, representando os valores cristãos de solidariedade e cuidado mútuo
Igreja primitiva compartilhando recursos e vivendo em comunidade, representando os valores cristãos de solidariedade e cuidado mútuo

Valores da Esquerda que Ressoam com o Evangelho


Quando falamos sobre a relação entre fé cristã e política, é fundamental reconhecer que existem valores defendidos pela esquerda política que se aproximam notavelmente dos ensinamentos bíblicos. Isso não significa que toda a esquerda seja cristã ou que todo cristão deva ser de esquerda, mas sim que há princípios progressistas que ecoam o coração do evangelho de Jesus Cristo. Neste tópico, vamos explorar três áreas principais onde essa convergência se manifesta de forma mais evidente: o cuidado com os pobres e marginalizados, a busca por igualdade e justiça social, e a valorização da solidariedade e vida comunitária.


a) Cuidado com os Pobres e Marginalizados


Um dos pilares mais consistentes e inegociáveis do evangelho é o cuidado com os pobres, oprimidos e marginalizados. Desde o Antigo Testamento até os ensinamentos de Jesus, a Bíblia revela que o caráter de Deus se manifesta de forma especial na sua preocupação com aqueles que estão nas margens da sociedade. O profeta Jeremias afirma que conhecer a Deus está diretamente ligado a fazer justiça aos pobres e necessitados: "Julgou a causa do aflito e do necessitado; por isso, lhe foi bem. Porventura, não é isto conhecer-me? — diz o Senhor" (Jeremias 22:16).


Jesus Cristo radicalizou ainda mais essa mensagem. Em seu primeiro discurso público registrado em Lucas 4:18-19, ele declara sua missão: "O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar aos pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e proclamar o ano aceitável do Senhor". Note que a missão de Jesus não era apenas espiritual no sentido etéreo, mas profundamente encarnada nas realidades sociais de seu tempo: libertar os oprimidos, dar dignidade aos pobres e restaurar os marginalizados.


A esquerda política moderna, em sua essência mais autêntica, compartilha dessa preocupação central. Políticas progressistas geralmente priorizam a criação de redes de proteção social, programas de redistribuição de renda, acesso universal à saúde e educação, e legislações que protegem os direitos dos trabalhadores e das minorias vulneráveis. Essas iniciativas buscam, de forma prática, reduzir o sofrimento humano e garantir que todos tenham condições dignas de vida – algo que ressoa profundamente com o mandamento bíblico de cuidar dos "pequeninos" (Mateus 25:40).


Enquanto a direita frequentemente enfatiza a responsabilidade individual e a meritocracia, a esquerda reconhece que as estruturas sociais e econômicas criam desigualdades sistêmicas que não podem ser superadas apenas pelo esforço individual. Essa visão estrutural da injustiça também está presente nas Escrituras. Os profetas do Antigo Testamento não apenas chamavam indivíduos ao arrependimento, mas confrontavam sistemas de opressão, denunciavam a ganância dos ricos e exigiam justiça social em nível coletivo (Amós 5:11-15; Isaías 10:1-2).


b) Igualdade e Justiça Social


Outro valor central da esquerda que encontra profundo eco no evangelho é a busca por igualdade e justiça social. Jesus foi extremamente crítico em relação à acumulação egoísta de riquezas e ao sistema econômico que privilegia poucos enquanto muitos vivem em miséria. Em Lucas 6:24-25, ele pronuncia uma advertência severa: "Mas ai de vós, os ricos! Porque já recebestes a vossa consolação. Ai de vós, os que estais agora fartos! Porque vireis a ter fome".


Jesus não estava condenando a riqueza em si, mas a injustiça estrutural que permite que alguns vivam em abundância enquanto ignoram o sofrimento dos pobres. Ele elogiou a viúva pobre que ofereceu suas duas pequenas moedas, contrastando sua generosidade com a ostentação dos ricos que davam do que lhes sobrava (Marcos 12:41-44). Ele advertiu que é extremamente difícil para um rico entrar no Reino de Deus, comparando-o a um camelo passando pelo fundo de uma agulha (Mateus 19:24).


Tiago, irmão de Jesus, é ainda mais direto ao confrontar a desigualdade social e a exploração dos trabalhadores: "Atendei, agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas desventuras, que vos sobrevirão. As vossas riquezas estão corruptas... O salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que por vós foi retido com fraude está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos do Senhor dos Exércitos" (Tiago 5:1-4).


A esquerda política historicamente tem defendido políticas que buscam reduzir a desigualdade econômica: impostos progressivos sobre os mais ricos, salário mínimo digno, regulamentação trabalhista, acesso universal aos serviços essenciais. Esses mecanismos visam criar uma sociedade mais equitativa, onde a distância entre ricos e pobres não seja abissal. Esse ideal de distribuição justa de recursos reflete o princípio bíblico de que os bens da terra foram dados por Deus para o bem comum, não para serem monopolizados por poucos (Levítico 25; Deuteronômio 15).


Vale ressaltar que a justiça bíblica não é apenas punitiva (punir o mal), mas também distributiva (garantir que todos tenham acesso ao que precisam para viver dignamente). O conceito do Jubileu em Levítico 25 ilustra perfeitamente isso: a cada cinquenta anos, as dívidas eram perdoadas, os escravos eram libertados e as terras eram redistribuídas. Era um sistema de reset econômico que impedia a concentração perpétua de riqueza e poder nas mãos de poucos.


c) Solidariedade e Vida Comunitária


O terceiro valor da esquerda que ressoa profundamente com o evangelho é a ênfase na solidariedade e na interdependência comunitária. Enquanto o individualismo exacerbado celebra a autonomia absoluta e o sucesso pessoal desconectado do bem coletivo, tanto a Bíblia quanto os movimentos progressistas autênticos reconhecem que os seres humanos são fundamentalmente relacionais e que nossa humanidade se realiza plenamente na comunidade.


Já exploramos como a igreja primitiva viveu esse ideal de forma radical em Atos 2 e 4, compartilhando recursos e garantindo que ninguém passasse necessidade. Mas esse princípio perpassa toda a Escritura. Paulo escreve aos Coríntios sobre a coleta para os cristãos pobres de Jerusalém, enfatizando o princípio da igualdade através da partilha: "No presente, a vossa abundância supra a falta deles, para que a abundância deles venha suprir a vossa falta, e, assim, haja igualdade" (2 Coríntios 8:14).


A imagem do Corpo de Cristo em 1 Coríntios 12 também ilustra essa interdependência essencial: cada membro tem sua função, e quando um sofre, todos sofrem; quando um é honrado, todos se alegram. Não há espaço para o individualismo que diz "não preciso de você" ou que celebra o sucesso próprio enquanto ignora o sofrimento alheio.


A esquerda, especialmente em suas vertentes mais humanistas e comunitárias, valoriza essa noção de responsabilidade coletiva. A ideia de que "a sociedade é responsável pelos seus membros mais vulneráveis" reflete o princípio bíblico de que somos guardadores de nossos irmãos (Gênesis 4:9). Políticas de bem-estar social, sistemas públicos de saúde e educação, e programas de assistência aos necessitados são expressões práticas dessa solidariedade institucionalizada – algo que, no ideal cristão, deveria ser vivido de forma ainda mais radical e amorosa nas comunidades de fé.


É importante notar que, no evangelho, essa solidariedade não é imposta externamente por medo ou obrigação legal, mas flui do coração transformado pelo amor de Deus. No entanto, isso não invalida a importância de estruturas sociais que protejam os vulneráveis. Afinal, se reconhecemos que vivemos em um mundo caído onde nem todos praticam voluntariamente o amor ao próximo, faz sentido criar sistemas que, mesmo imperfeitos, minimizem o sofrimento e promovam algum grau de justiça social.


Em suma, quando analisamos valores como o cuidado com os marginalizados, a busca por igualdade econômica e a ênfase na solidariedade comunitária, encontramos uma convergência notável entre os ensinamentos de Jesus Cristo e os ideais progressistas. Isso nos convida a repensar polarizações simplistas e reconhecer que, em muitos aspectos fundamentais, os valores da esquerda social ecoam o coração do evangelho.


Pessoas diversas unidas segurando símbolos de justiça social, representando valores progressistas que ecoam ensinamentos do evangelho
Pessoas diversas unidas segurando símbolos de justiça social, representando valores progressistas que ecoam ensinamentos do evangelho

Onde a Esquerda Ainda Se Afasta do Evangelho


Embora tenhamos identificado convergências significativas entre certos valores progressistas e os ensinamentos bíblicos, seria intelectualmente desonesto e teologicamente irresponsável sugerir que a esquerda política representa perfeitamente o evangelho de Jesus Cristo. Existem diferenças fundamentais e pontos de tensão que precisam ser reconhecidos e discutidos com honestidade. Neste tópico, vamos explorar três áreas principais onde a esquerda se afasta dos princípios cristãos: a rejeição de Deus em muitas correntes ideológicas, a questão da imposição estatal versus a voluntariedade motivada pelo amor, e a tensão entre coletivismo autoritário e a dignidade individual que a Bíblia defende.


A Rejeição de Deus e o Materialismo Ateu


Uma das diferenças mais fundamentais entre o cristianismo e muitas vertentes da esquerda política, especialmente o marxismo clássico e o comunismo histórico, é a questão da existência e centralidade de Deus. Karl Marx famosamente declarou que "a religião é o ópio do povo", sugerindo que a fé seria uma ferramenta de alienação que impede as pessoas de enfrentarem as injustiças reais do mundo. O materialismo dialético marxista propõe uma visão de mundo estritamente materialista, onde não há espaço para o transcendente, o espiritual ou o divino.


Para o cristão, essa rejeição de Deus não é apenas um detalhe filosófico secundário, mas uma ruptura fundamental com a própria fonte da moralidade, do sentido e da esperança. A Bíblia ensina que Deus é o criador de todas as coisas, que a humanidade foi feita à sua imagem (Gênesis 1:27), e que todo valor humano, toda dignidade e toda ética derivam dessa relação com o Criador. O salmista declara: "Os céus proclamam a glória de Deus" (Salmo 19:1), e o apóstolo Paulo afirma que "nele vivemos, e nos movemos, e existimos" (Atos 17:28).


Quando a esquerda adota uma cosmovisão ateísta, ela se priva da base última para afirmar a dignidade humana e a moralidade objetiva. Se não há Deus, se somos apenas produtos do acaso evolutivo, por que deveríamos cuidar dos pobres? Por que a justiça seria mais importante que o poder? O cristianismo oferece uma resposta transcendente: amamos e cuidamos porque Deus nos amou primeiro (1 João 4:19), porque cada pessoa carrega a imagem divina e tem valor infinito aos olhos de Deus.


É verdade que nem toda a esquerda é ateísta. Existem movimentos progressistas cristãos, a Teologia da Libertação na América Latina, e muitos ativistas sociais que fundamentam seu trabalho em convicções religiosas profundas. No entanto, historicamente, muitos regimes de esquerda perseguiram a religião, fecharam igrejas e tentaram erradicar a fé do espaço público. Exemplos incluem a União Soviética, a China comunista sob Mao, e regimes em Cuba e Coreia do Norte, onde a prática religiosa foi severamente reprimida.


Para o cristão que se identifica com valores progressistas de justiça social, é crucial manter Deus no centro de tudo. A solidariedade não pode ser meramente humanista, mas deve fluir do reconhecimento de que servimos a um Deus que se revelou em Jesus Cristo e que nos chama a amar como ele nos amou. Sem essa âncora transcendente, os valores progressistas podem se tornar apenas mais uma ideologia humana sujeita às vicissitudes da história e do poder.


Partilha Voluntária versus Imposição Estatal


Outro ponto de tensão importante entre o evangelho e certas implementações da esquerda política diz respeito à natureza da solidariedade e da partilha. Como vimos, a igreja primitiva praticou uma partilha radical de recursos, onde "ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía" (Atos 4:32). No entanto, é crucial notar que essa partilha era voluntária e motivada pelo amor, não imposta por decreto governamental ou pela força.


Em Atos 5:1-11, encontramos a história de Ananias e Safira, que venderam uma propriedade mas retiveram parte do dinheiro enquanto fingiam ter doado tudo. Pedro os confronta, mas note o que ele diz: "Conservando-a, porventura, não seria tua? E, vendida, não estaria o preço em teu poder?" (Atos 5:4). Ou seja, mesmo na igreja primitiva com sua ética radical de partilha, a propriedade ainda era reconhecida como legítima, e a doação era uma escolha livre, não uma obrigação forçada.


O apóstolo Paulo, ao falar sobre a oferta para os cristãos pobres de Jerusalém, enfatiza: "Cada um contribua segundo tiver proposto no coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama a quem dá com alegria" (2 Coríntios 9:7). A generosidade cristã autêntica nasce de um coração transformado pelo amor de Deus, não da coerção externa. Quando ajudamos os pobres porque somos forçados pela lei ou pelo medo de punição, perdemos a dimensão essencial do amor sacrificial que caracteriza o evangelho.

Aqui surge uma tensão real: muitos sistemas de esquerda, especialmente os mais autoritários, implementaram a redistribuição de riqueza através da força estatal, confiscando propriedades, coletivizando a agricultura e eliminando a liberdade econômica individual. Os resultados históricos frequentemente foram desastrosos: fome em massa na União Soviética e na China de Mao, empobrecimento generalizado, e a substituição de uma classe opressora (os capitalistas) por outra (a burocracia do partido).


Isso não significa que o Estado não deva ter nenhum papel na promoção da justiça social. Afinal, os profetas do Antigo Testamento frequentemente apelavam aos reis e governantes para que fizessem justiça e protegessem os vulneráveis (Salmo 72:1-4). A questão é encontrar o equilíbrio adequado entre:


  1. Responsabilidade individual e comunitária: A igreja e os crentes são chamados a cuidar dos pobres voluntariamente, com generosidade alegre.

  2. Estruturas sociais justas: O Estado tem um papel legítimo em criar leis que protejam os vulneráveis e promovam algum grau de equidade.

  3. Preservação da liberdade: A dignidade humana inclui a liberdade de escolha, inclusive na esfera econômica, e sistemas excessivamente coercitivos violam essa dignidade.


Coletivismo Autoritário versus Dignidade Individual


Um terceiro ponto onde certa esquerda se afasta do evangelho é quando o coletivismo se torna autoritário e esmaga a dignidade e liberdade individual. A Bíblia valoriza tanto a comunidade quanto o indivíduo. Por um lado, somos membros de um corpo (1 Coríntios 12); por outro, cada pessoa é responsável diante de Deus por suas escolhas (Ezequiel 18:20; Romanos 14:12).


Regimes comunistas históricos frequentemente sacrificaram a individualidade no altar do coletivo. Dissidência era punida, liberdade de expressão era suprimida, e o Estado controlava todos os aspectos da vida. Pessoas eram tratadas como engrenagens em uma máquina ideológica, não como seres humanos com dignidade inerente, consciência individual e direito a fazer escolhas.


O evangelho, por outro lado, respeita profundamente a liberdade humana. Deus mesmo, que poderia forçar todos a obedecê-lo, escolheu nos criar livres, capazes de rejeitá-lo ou aceitá-lo. A Bíblia está repleta de convites, não de coerção: "Escolhei hoje a quem sirvais" (Josué 24:15); "Vinde a mim, todos os que estais cansados" (Mateus 11:28). Deus respeita nossa dignidade dando-nos liberdade real, mesmo quando essa liberdade pode resultar em escolhas erradas.


Além disso, muitas implementações históricas da esquerda autoritária resultaram em violações massivas dos direitos humanos: perseguição religiosa, prisões políticas, censura, assassinatos em massa. Estimativas sugerem que regimes comunistas no século XX foram responsáveis por dezenas de milhões de mortes. Isso está em direta contradição com o valor bíblico da santidade da vida humana e da dignidade de cada pessoa feita à imagem de Deus.


Questões Morais Contemporâneas


Há também tensões em questões morais específicas onde certos segmentos da esquerda progressista adotam posições que muitos cristãos consideram incompatíveis com os ensinamentos bíblicos. Temas como o aborto, a definição de casamento e família, e questões de identidade de gênero geram debates complexos onde progressistas e conservadores cristãos discordam profundamente.


Sem entrar nos méritos específicos de cada debate, é importante reconhecer que, para muitos cristãos, esses temas representam questões de fidelidade às Escrituras que não podem ser facilmente conciliadas com certas agendas progressistas. Isso cria um dilema real: como apoiar a justiça social e o cuidado com os pobres (valores de esquerda que ecoam o evangelho) sem comprometer convicções sobre a santidade da vida e a ordem criacional (valores que muitos cristãos consideram inegociáveis)?



Em resumo, embora a esquerda social ressoe com o evangelho em aspectos importantes relacionados à justiça, solidariedade e cuidado com os vulneráveis, ela se afasta do cristianismo quando:


  • Rejeita Deus e adota uma cosmovisão materialista que nega o transcendente

  • Impõe a partilha pela força em vez de cultivá-la através da transformação voluntária dos corações

  • Sacrifica a dignidade individual e a liberdade no altar do coletivismo autoritário

  • Promove certas agendas morais que muitos cristãos consideram incompatíveis com as Escrituras


O cristão que se identifica com valores progressistas deve fazer isso criticamente, sempre mantendo Cristo no centro, reconhecendo que nenhuma ideologia política humana captura perfeitamente o Reino de Deus.


"Balança equilibrando comunidade e liberdade individual, representando a tensão entre valores coletivos e dignidade pessoal no cristianismo
"Balança equilibrando comunidade e liberdade individual, representando a tensão entre valores coletivos e dignidade pessoal no cristianismo

Comparação com a Direita


Após explorarmos como os valores da esquerda ressoam com o evangelho em certos aspectos e onde se afastam dele em outros, é igualmente importante examinar a direita política sob a mesma lente bíblica. Muitos cristãos, especialmente no contexto brasileiro e norte-americano contemporâneo, identificam-se automaticamente com a direita, assumindo que ela representa naturalmente os valores cristãos. No entanto, uma análise honesta revela que, embora a direita se aproxime do evangelho em alguns pontos importantes, ela também apresenta contradições significativas com os ensinamentos de Jesus Cristo, especialmente quando se torna excludente, nacionalista exacerbada ou excessivamente voltada para o individualismo.


Pontos de Convergência: Onde a Direita Se Aproxima da Bíblia


Seria injusto não reconhecer que a direita política defende valores que muitos cristãos consideram fundamentais e biblicamente fundamentados. Vamos examinar essas áreas de convergência com honestidade intelectual e teológica.


Defesa da Família e Valores Morais Tradicionais


Um dos pontos mais fortes de identificação entre cristãos conservadores e a direita política é a defesa da família tradicional e dos valores morais arraigados nas Escrituras. A Bíblia apresenta o casamento entre homem e mulher como uma instituição ordenada por Deus desde a criação (Gênesis 2:24), e Jesus reafirma essa visão em seu ministério (Mateus 19:4-6). A família é apresentada nas Escrituras como a unidade básica da sociedade, o contexto primário para a educação dos filhos e a transmissão de valores (Deuteronômio 6:6-7; Provérbios 22:6).


A direita conservadora geralmente valoriza e defende essa estrutura familiar, resistindo a redefinições que muitos cristãos consideram incompatíveis com o ensino bíblico. Além disso, a direita tende a defender princípios de moralidade sexual, a importância do compromisso matrimonial e o papel dos pais na educação dos filhos – todos valores que encontram ressonância nas Escrituras.


Valorização da Vida Humana


Outro ponto de convergência importante é a defesa da vida, especialmente da vida nascente. A Bíblia ensina que a vida humana é sagrada porque somos criados à imagem de Deus (Gênesis 1:27). O salmista celebra o fato de que Deus nos forma no ventre materno: "Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda" (Salmo 139:16).


Para muitos cristãos, a questão do aborto é inegociável, e a direita política geralmente se posiciona contra o aborto ou em favor de restrições significativas. Essa defesa da santidade da vida humana desde a concepção ressoa profundamente com convicções bíblicas sobre o valor intrínseco de cada pessoa.


Ordem Social e Respeito à Autoridade


A Bíblia também valoriza a ordem social e ensina o respeito às autoridades constituídas. Paulo escreve em Romanos 13:1-2: "Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus".


A direita conservadora tradicionalmente enfatiza a importância da lei e ordem, do respeito às instituições e da estabilidade social. Em contextos onde há ameaças reais de caos, anarquia ou quebra do contrato social, essa ênfase pode refletir uma preocupação legítima e bíblica com a ordem que permite a convivência humana e protege os vulneráveis da violência arbitrária.


Pontos de Divergência: Onde a Direita Contradiz o Evangelho


No entanto, apesar dessas convergências, existem áreas onde a direita política se afasta significativamente dos ensinamentos de Jesus, especialmente quando se torna excludente, nacionalista ou centrada no individualismo egoísta.


Individualismo e a Negligência dos Pobres


Uma das críticas mais sérias que pode ser feita à direita econômica, especialmente em suas versões neoliberais ou libertárias, é o individualismo exacerbado que frequentemente negligencia os pobres e vulneráveis. A ideologia do "cada um por si", a glorificação da competição desenfreada e a resistência a qualquer forma de redistribuição de riqueza contradizem frontalmente o evangelho.


Como vimos anteriormente, Jesus foi inequívoco em sua crítica aos ricos que acumulam enquanto ignoram os pobres (Lucas 16:19-31; Tiago 5:1-6). A Bíblia não celebra o sucesso individual desconectado da responsabilidade comunitária. Provérbios 14:31 afirma: "O que oprime o pobre insulta aquele que o criou, mas a este honra o que se compadece do necessitado".


Quando a direita promove políticas que favorecem os ricos, cortam programas sociais para os vulneráveis e culpam os pobres por sua pobreza através de uma meritocracia cruel, ela contradiz o coração do evangelho. Jesus não disse "bem-aventurados os empreendedores de sucesso", mas "bem-aventurados os pobres" (Lucas 6:20). Ele não elogiou aqueles que acumulam riquezas, mas advertiu que é extremamente difícil para os ricos entrarem no Reino de Deus (Mateus 19:23-24).


Nacionalismo e Xenofobia


Outro ponto de tensão significativo é quando a direita política abraça o nacionalismo exacerbado e a xenofobia. Em muitos contextos contemporâneos, partidos de direita têm defendido políticas anti-imigração, construção de muros, rejeição de refugiados e retórica que demoniza o estrangeiro. Isso está em direta contradição com os ensinamentos bíblicos sobre o tratamento dos estrangeiros.


O Antigo Testamento é repleto de comandos para amar e proteger o estrangeiro: "Também amarás o estrangeiro, pois fostes estrangeiros na terra do Egito" (Deuteronômio 10:19). "Quando um estrangeiro habitar convosco na vossa terra, não o maltratareis. O estrangeiro que habita convosco será como o natural entre vós, e tu o amarás como a ti mesmo" (Levítico 19:33-34).


Jesus radicaliza ainda mais essa mensagem na parábola do Bom Samaritano (Lucas 10:25-37), onde o herói é justamente um estrangeiro marginalizado. Ele ensina que nosso próximo não é apenas quem se parece conosco ou compartilha nossa nacionalidade, mas qualquer pessoa necessitada que cruzar nosso caminho. Em Mateus 25:35, Jesus identifica-se com o estrangeiro: "era forasteiro, e me acolhestes".


Quando a direita promove políticas excludentes que fecham fronteiras para refugiados que fogem de guerras e fome, que tratam imigrantes como ameaças em vez de seres humanos feitos à imagem de Deus, ela contradiz radicalmente o evangelho. O Reino de Deus não tem fronteiras nacionais e não faz acepção de pessoas com base em passaporte ou cor da pele (Atos 10:34-35; Gálatas 3:28).


Militarismo e Violência


Muitos movimentos de direita política também abraçam o militarismo, a glorificação da força armada e, em alguns casos, a violência como solução para conflitos. Embora a Bíblia reconheça que o Estado tem o direito de usar a espada para punir o mal (Romanos 13:4), Jesus ensinou um caminho radicalmente diferente para seus seguidores.


No Sermão da Montanha, Jesus proclama: "Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus" (Mateus 5:9). Ele ordena: "Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem" (Mateus 5:44). Quando Pedro tenta defendê-lo com a espada, Jesus o repreende: "Embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada à espada perecerão" (Mateus 26:52).


Embora a questão da guerra justa e da defesa legítima seja complexa e cristãos sinceros discordem sobre ela, o que não pode ser questionado é que Jesus não glorificou a violência ou o poder militar. Ele venceu através do amor sacrificial e da cruz, não pela espada. Quando a direita celebra a força bruta, promove guerras desnecessárias ou trata a violência como virtude, ela se afasta do caminho de Jesus.


Defesa do Meio Ambiente


Embora não seja exclusivo da direita, há uma tendência em certos círculos conservadores de negligenciar ou até negar questões ambientais. No entanto, a Bíblia ensina que a criação pertence a Deus (Salmo 24:1) e que os humanos receberam o mandato de cultivar e guardar a terra (Gênesis 2:15), não de explorá-la destrutivamente.


A teologia da mordomia cristã exige que cuidemos da criação de Deus para as gerações futuras. Quando a direita prioriza lucros corporativos sobre a preservação ambiental ou nega a realidade das mudanças climáticas por conveniência ideológica, ela falha em ser guardiã fiel da criação de Deus.


Hipocrisia Moral e Duplo Padrão


Finalmente, é necessário apontar que, embora a direita cristã frequentemente se posicione como guardiã da moralidade, ela nem sempre pratica os valores que prega. Jesus foi extremamente duro com a hipocrisia religiosa (Mateus 23), e vemos padrões semelhantes hoje quando líderes conservadores cristãos defendem figuras políticas claramente imorais porque elas promovem sua agenda.


Quando a direita perdoa facilmente a ganância, a mentira, o adultério e a opressão de seus próprios líderes, enquanto condena duramente os mesmos pecados em adversários políticos, ela revela que sua preocupação não é genuinamente com a santidade bíblica, mas com poder político. Isso é farisaísmo, e Jesus não teve palavras suaves para os fariseus de seu tempo.


Síntese: A Direita no Espelho do Evangelho


Em resumo, a direita política se aproxima do evangelho quando:

  • Defende a família tradicional e valores morais bíblicos

  • Valoriza a santidade da vida humana

  • Promove ordem social e respeito às instituições

Mas a direita contradiz o evangelho quando:

  • Abraça o individualismo que negligencia os pobres

  • Promove nacionalismo e xenofobia contra estrangeiros

  • Glorifica o militarismo e a violência

  • Negligencia a mordomia da criação

  • Pratica hipocrisia moral e duplo padrão


O cristão que se identifica com a direita deve fazer isso criticamente, sempre lembrando que Jesus não cabe em nossas caixas políticas e que o Reino de Deus confronta tanto o conservadorismo egoísta quanto o progressismo ateu.


Caminho político bifurcado mostrando valores e contradições da direita em relação aos ensinamentos do evangelho de Jesus Cristo
Caminho político bifurcado mostrando valores e contradições da direita em relação aos ensinamentos do evangelho de Jesus Cristo

Conclusão: O Cristão e o Reino de Deus Acima das Ideologias


Chegamos ao final desta reflexão sobre a relação entre fé cristã e política, especificamente examinando como os valores da esquerda e da direita se aproximam ou se afastam dos ensinamentos bíblicos. Após percorrer esse caminho analítico, uma conclusão se torna inescapável: se olharmos exclusivamente para os valores sociais e comunitários, os ensinamentos de Jesus Cristo e da Bíblia como um todo se aproximam notavelmente mais da esquerda do que da direita. No entanto, essa afirmação precisa ser cuidadosamente qualificada e contextualizada para evitar simplificações perigosas.


A Aproximação Social entre Evangelho e Esquerda


Quando examinamos temas como partilha de recursos, solidariedade comunitária, cuidado com os pobres e marginalizados, e busca por igualdade e justiça social, encontramos uma convergência impressionante entre o que Jesus ensinou e o que os movimentos progressistas, em sua melhor expressão, defendem. A igreja primitiva descrita em Atos praticou um modelo de vida que muitos hoje classificariam como radical ou até mesmo "comunista" – embora motivado por amor a Deus, não por ideologia política.


Jesus Cristo dedicou seu ministério aos excluídos da sociedade: prostitutas, cobradores de impostos, leprosos, samaritanos, pobres e pecadores. Ele confrontou duramente os ricos e religiosos que acumulavam poder e riqueza enquanto ignoravam o sofrimento ao seu redor. Ele ensinou que o Reino de Deus pertence aos pobres, aos que choram, aos humildes e aos famintos de justiça (Mateus 5:3-10). Ele declarou que seria extremamente difícil para os ricos entrarem no seu Reino (Mateus 19:24).


Os profetas do Antigo Testamento denunciaram sistemas de opressão, exigiram justiça para os vulneráveis e anunciaram o juízo de Deus sobre sociedades que exploravam os pobres e marginalizados. A lei mosaica incluía provisões revolucionárias para sua época: o ano do Jubileu (Levítico 25), onde dívidas eram perdoadas e terras redistribuídas; as leis de respigar que garantiam alimento aos pobres (Levítico 19:9-10); os mandamentos de não cobrar juros dos necessitados (Êxodo 22:25).


Tudo isso revela que a preocupação com justiça social, redistribuição de recursos e proteção dos vulneráveis não é uma invenção moderna da esquerda política, mas está no coração da revelação bíblica. Quando a esquerda defende políticas que buscam reduzir a desigualdade, proteger os trabalhadores, garantir acesso universal à saúde e educação, e criar redes de proteção social, ela está, consciente ou inconscientemente, ecoando valores profundamente enraizados nas Escrituras.


As Limitações da Esquerda e da Direita


No entanto, como vimos, nem a esquerda nem a direita representam perfeitamente o evangelho. A esquerda se afasta dos princípios cristãos quando rejeita Deus, quando impõe a solidariedade pela força estatal em vez de cultivá-la através da transformação voluntária dos corações, quando sacrifica a dignidade individual no altar do coletivismo autoritário, e quando promove certas agendas morais que muitos cristãos consideram incompatíveis com as Escrituras.


A direita, por sua vez, embora se aproxime do evangelho na defesa da família, da vida e da ordem moral, frequentemente falha drasticamente nos testes bíblicos de inclusão, cuidado com os pobres e amor ao próximo diferente. Quando a direita se torna excludente, nacionalista, individualista ou indiferente ao sofrimento dos marginalizados, ela contradiz mandamentos centrais de Jesus Cristo.


O problema fundamental é que tanto a esquerda quanto a direita são construções humanas, ideologias políticas que surgem de contextos históricos específicos e que carregam consigo tanto insights válidos quanto cegueiras significativas. Nenhuma ideologia política humana captura plenamente o Reino de Deus, e o cristão que absolutiza qualquer uma delas comete idolatria, colocando lealdade política acima da fidelidade a Cristo.


O Cristão do Reino: Acima e Além das Polarizações


Então, qual deve ser a postura do cristão autêntico diante desses dilemas políticos? A resposta é que o cristão deve ser, primeiro e acima de tudo, cidadão do Reino de Deus. Nossa identidade primária não é esquerdista ou direitista, progressista ou conservadora, mas discípulo de Jesus Cristo. E essa identidade deve moldar radicalmente como nos posicionamos em relação às questões políticas e sociais de nosso tempo.


Ser do Reino de Deus significa que não nos prendemos cegamente a rótulos políticos ou lealdades partidárias. Em vez disso, confrontamos egoísmo e injustiça onde quer que se encontrem – seja na esquerda ou na direita, seja entre progressistas ou conservadores. Nossa bússola moral não é o que determinado partido defende, mas o que Jesus ensinou e exemplificou.


Isso significa que o cristão do Reino:


Defende os pobres e marginalizados incondicionalmente, mesmo quando isso o coloca em conflito com interesses econômicos de direita. Não podemos ser indiferentes à fome, à falta de moradia, à exploração trabalhista ou à negação de cuidados básicos de saúde. Quando Jesus disse "o que fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes" (Mateus 25:40), ele não estava falando metaforicamente.


Pratica solidariedade por amor a Deus e ao próximo, não por obrigação estatal ou conveniência política. A generosidade cristã flui de corações transformados pelo evangelho. Compartilhamos porque fomos amados primeiro (1 João 4:19), porque reconhecemos que tudo o que temos vem de Deus e deve ser administrado para sua glória e o bem comum.


Rejeita o nacionalismo idólatra e a xenofobia, lembrando que em Cristo "não pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo em todos" (Colossenses 3:11). Nossa lealdade última não é a bandeiras nacionais, mas ao Reino que transcende todas as fronteiras.


Valoriza a vida humana em todas as suas dimensões – desde a concepção até a morte natural, incluindo a vida dos refugiados, dos prisioneiros, dos pobres e dos inimigos. Não podemos ser seletivamente pró-vida, defendendo o nascituro enquanto ignoramos crianças famintas ou apoiamos pena de morte.


Busca justiça restaurativa, não apenas punitiva, lembrando que Jesus veio buscar e salvar o perdido (Lucas 19:10). Nosso sistema de justiça deve refletir tanto a santidade que pune o mal quanto a misericórdia que busca restauração.


Cuida da criação de Deus, reconhecendo que fomos chamados a ser mordomos, não exploradores, do planeta que ele criou e declarou "muito bom" (Gênesis 1:31).

Pratica humildade intelectual e caridade hermenêutica, reconhecendo que nem sempre temos todas as respostas e que cristãos sinceros podem discordar sobre aplicações específicas de princípios bíblicos em contextos políticos complexos.


O Que Nos Distingue


O que fundamentalmente distingue o cristão do Reino de qualquer ideologia política é a motivação e a fonte de nossos valores. Não praticamos solidariedade porque um partido nos disse para fazer isso, ou porque acreditamos que o Estado deve forçar todos a serem generosos. Praticamos solidariedade porque fomos transformados pelo amor de um Deus que, sendo rico, se fez pobre por nós (2 Coríntios 8:9).


Não defendemos os pobres porque seguimos uma ideologia de esquerda, mas porque servimos a um Deus que "faz justiça ao órfão e à viúva" (Deuteronômio 10:18). Não buscamos justiça social por conveniência política, mas porque nosso Deus é um Deus de justiça que ordena: "Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas" (Isaías 1:17).


Um Chamado à Radicalidade do Evangelho


Vivemos em tempos de profunda polarização, onde as pessoas são pressionadas a escolher lados e onde a nuance é frequentemente vista como fraqueza. Mas o evangelho de Jesus Cristo é mais radical do que qualquer ideologia política de esquerda ou direita. Ele nos chama a amar nossos inimigos, a dar a outra face, a caminhar a segunda milha, a perder nossa vida para encontrá-la, a ser os últimos para sermos os primeiros.


Este evangelho não cabe em caixas partidárias. Ele confronta o individualismo egoísta da direita e o coletivismo ateu da esquerda. Ele transcende o nacionalismo conservador e o relativismo progressista. Ele nos chama a uma forma de vida que, se levada a sério, é verdadeiramente contra-cultural em relação a qualquer sistema político humano.


Palavra Final


Então sim, quando olhamos especificamente para valores sociais – partilha, solidariedade, cuidado com pobres e marginalizados, busca por justiça e igualdade – os ensinamentos bíblicos se aproximam mais da esquerda do que da direita. Mas o cristão não deve simplesmente abraçar a esquerda política, assim como não deve abraçar a direita. Em vez disso, devemos abraçar Jesus Cristo e seu Reino, permitindo que ele molde nossas convicções políticas, e não o contrário.


Que possamos ser conhecidos não por nossas afiliações partidárias, mas por nosso amor radical (João 13:35). Que confrontemos a injustiça onde quer que a encontremos. Que defendamos os vulneráveis mesmo quando for politicamente inconveniente. Que pratiquemos generosidade alegre, hospitalidade radical e solidariedade sacrificial.


Porque, no final, não importa se somos chamados de esquerdistas ou direitistas. O que importa é se seremos chamados de filhos e filhas do Rei, servos fiéis que viveram os valores do Reino de Deus em um mundo desesperadamente necessitado de sua justiça, misericórdia e amor.


Cruz de Cristo iluminando caminho além das divisões políticas, representando o Reino de Deus acima de ideologias de esquerda e direita
Cruz de Cristo iluminando caminho além das divisões políticas, representando o Reino de Deus acima de ideologias de esquerda e direita

E você, como tem vivido os valores do Reino de Deus em meio às polarizações políticas do nosso tempo?


Este artigo te desafiou a repensar a relação entre fé e política? Deixe seu comentário abaixo compartilhando sua perspectiva! Como cristão, você se sente mais alinhado com valores de esquerda, direita, ou acredita que o evangelho transcende essas categorias?


👥 Vamos construir uma comunidade de diálogo respeitoso!


Não concorda com tudo que foi dito aqui? Ótimo! O Reino de Deus é grande o suficiente para conversas honestas. Compartilhe suas perspectivas nos comentários e vamos aprender juntos, sempre com amor e respeito mútuo.


Deseja aprofundar ainda mais sua jornada de fé e gratidão?


Acesse nossos materiais especiais:



Se inscreva em nossa NEWSLETTER e receba reflexões, esboços de sermão, estudos bíblicos e artigos diretamente em seu email. Clique AQUI.

Comentários


bottom of page